Variantes da Covid-19 podem isolar o Brasil do mundo
Demora na vacinação e o comportamento da população e das autoridades podem levar o Brasil a ser celeiro de mutações do vírus, gerando como consequência o isolamento mundial do país. Leia mais.
A situação sanitária do Brasil é muito preocupante, mas a população e os governos agem como se os números de casos de coronavírus estivessem em queda vertical. A avaliação é do infectologista Dalcy Albuquerque, membro da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical. A consequência disso já se vê no número de mortes e internações, disse o especialista, e pode também levar ao aparecimento de novas mutações do vírus, devido à alta taxa de transmissão.
“Aqui o controle da pandemia é muito fraco, muito falho. O vírus está se reproduzindo livremente, especialmente quando as pessoas estão nas ruas, sem cuidado. E nessa ampla replicação viral, pode haver ‘erros’ no processo, daí as chances de se ter variantes. O Brasil tem fronteira com outros países, temos voos indo e vindo de quase todo o mundo, o nosso país é grande e a situação sanitária é grave. Com tudo isso, o país pode vir a ser um celeiro de novas variantes do coronavírus“, disse.
O médico explicou que a maioria dessas alterações, em partes do vírus que surgem da replicação, não se desenvolve. Mas alguns desses ‘erros’ podem se tornar predominantes, uma nova cepa, ou conviver com o original, como acontece com as variantes originárias do Reino Unido, África do Sul e da região Norte do Brasil. Em princípio são mudanças que até agora tornaram o vírus mais transmissível, mas não mais letal.
Na opinião de Dalcy Albuquerque o Brasil faz “muito pouco da vigilância virológica, testamos pouco as pessoas e fazemos pouca pesquisa sobre a genotipagem do vírus, ao contrário da Europa, por exemplo. Na Inglaterra, a partir de certa quantidade de exames, se faz uma análise mais detalhada. E nós não fazemos. Pode então haver novas variantes já circulando e nós não sabemos. E por não sabermos, não levamos adiante políticas públicas para combater isso, com isolamento de certas áreas, controle sanitário mais assertivo para barrar a propagação“.
A mutação do vírus, a falta de cuidado da população, a inércia do governo federal e a demora na vacinação em massa podem levar a perda inclusive dos efeitos da campanha de imunização já em andamento.
Dalcy Albuquerque diz que o país faz feio no combate à pandemia. “Sob o ponto de vista médico, epidemiológico, o Brasil só não errou mais por falta de tempo, não teria como errar mais do que já errou. Inclusive pela ausência do governo federal na condução de uma política nacional, de uma coordenação. Não houve apoio a hospitais de campanha, negociação antecipada e ágil de vacinas, ao contrário, houve descrédito com medidas sérias contra o vírus. O país voltou a ter aumento nos casos e nada foi feito, continuou-se tudo como se o número tivesse em ritmo de queda“.
“Se houver nova variante importante, pode-se perder o que foi vacinado. Muitas prefeituras estão suspendendo a vacinação por falta de doses. É preciso acelerar a produção pelos institutos brasileiros. E aqui nova falha do governo federal que, diferentemente de outros países, negociou com apenas um fornecedor, Oxford/AstraZeneca. Temos o imunizante da Sinovac devido a uma negociação direta do governo paulista. Outros países negociaram antecipadamente com vários fabricantes“, concluiu.
A nova cepa do coronavírus, batizada de P1, já se espalha pelo país causando preocupação com a possibilidade de uma terceira onda. De acordo com a Secretaria Estadual de Saúde, já somam 25 os casos de Covid-19 no estado provocados pela variante do coronavírus inicialmente identificada em Manaus. Desses, 16 são de pessoas que não estiveram no Amazonas nem em contato com quem tenha viajado pela região. Ou seja, a linhagem P1 está produzindo de forma significativa infecções autóctones, que ocorrem sem “importação”. Para tentar conter a propagação, Araraquara, que concentra 12 dos 25 casos de São Paulo — os demais estão na capital (9), em Jaú (3) e em Águas de Lindoia (1) —, entrou em lockdown por 15 dias.
O avanço da P1 pelo país é preocupante, pois, segundo cientistas, ela demonstra ser mais transmissível. O principal freio seria a vacinação em massa. Mas a campanha nacional de imunização sofre com a escassez de vacinas.
Para Fernando Spilki, virologista que coordena a Rede Corona-ômica (iniciativa do Ministério da Ciência para observar a evolução do coronavírus), diante do número elevado de casos, do ritmo lento da vacinação e da nova linhagem circulando, o país deveria considerar, “se não um lockdown completo”, medidas que restrinjam a circulação. A situação atual, ele alerta, nos encaminha para uma terceira onda, ainda mais preocupante, pois, agora, com variantes do vírus. Ele diz que vivencia-se hoje o efeito da falta de controle da movimentação de cidadãos no país.
As mutações afetam a proteína S, que é determinante na propagação do vírus. Por isso, e pelo pico de doentes observados em Manaus, cientistas acreditam que a variante seja sim mais transmissível. O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, afirmou, em audiência no Senado, que “análises indicam que ela seja três vezes mais contagiosa“, mas não informou a estratégia da pasta para evitar a disseminação da cepa. Ainda não se sabe se ela é mais letal. “Precisamos de estudos epidemiológicos e clínicos melhores”, explica Ester Sabino, da USP, que lidera sequenciamentos genéticos do vírus.
Outro problema relacionado a nova linhagem da COVID-19 é que quem já foi contaminado pode ser novamente infectado por essa variante do Sars-CoV-2. “Sabemos que a reinfecção está sim ocorrendo, mas ainda não sabemos com que frequência”, conta Sabino.
Os pesquisadores se preocupam pela capacidade que essa linhagem do coronavírus parece ter em “driblar” o sistema imunológico de quem já superou a doença e deveria, em tese, ser resistente. Uma outra questão que não está respondida é a da intensidade da infecção em quem já adoeceu anteriormente: ela é maior, igual, ou menos forte?
As duas vacinas em uso no Brasil, a da AstraZeneca/Oxford, produzida em parceria com a Fiocruz, e a do Butantan, em acordo com a Sinovac, não divulgaram estudos que respondam sua ação diante da linhagem de Manaus.
Com isto, crescem as possibilidades de uma terceira onda e de eventual isolamento do Brasil no cenário mundial.
Com informações da RFI e do globo.com