Decreto de Bolsonaro eleva risco de feminicídios

Por sindoif

Confira matéria que aponta que, em 2016, 40% dos feminicídios no Brasil foram com armas de fogo e confira o impacto que o decreto que flexibiliza a posse de armas terá sobre a vida das mulheres.

Quinto país que mais mata mulheres no mundo, de acordo com números da OMS (Organização Mundial da Saúde), o Brasil pode piorar seus indicadores de feminicídio com a flexibilização do uso de armas de fogo. Dados analisados por especialistas mostram que a liberação de armamentos pode aumentar a vulnerabilidade em casos de violência doméstica e que, dificilmente, as mulheres conseguirão se defender de agressões.

Decreto assinado na terça-feira, 15/01, pelo presidente Jair Bolsonaro prevê que a “efetiva necessidade” para posse de arma concedida pela Polícia Federal irá abranger proprietários rurais e de estabelecimentos comerciais, agentes de segurança e moradores de unidades federativas que tenham índices anuais de mais de 10 homicídios por 100 mil habitantes, conforme os dados de 2016 do Atlas da Violência 2018. Todos os estados e o Distrito Federal se encaixam nesse critério. O texto não muda regras para porte de arma.

Na avaliação de especialistas que atuam na área, defensores do armamento desconhecem fatores do cenário de violência contra mulher, como o perfil das vítimas e dos agressores e as fragilidades da rede de assistência, incluindo falhas no atendimento nas delegacias e na fiscalização de medidas protetivas e número insuficiente de casas de abrigo.

O entendimento é que a maior permissividade irá colocar uma arma à disposição de um agressor em potencial. “As estatísticas de violência contra a mulher são reveladoras de quanto o espaço doméstico é inseguro para as mulheres em geral e é o ambiente por excelência onde a mulher é vitimada. A expectativa em relação a essa alteração é a pior possível”, afirmou a advogada criminal e de direito da mulher Maira Pinheiro, da Rede Feminista de Juristas.

Mulheres vítimas de armas

De acordo com o “Mapa da Violência 2015: homicídio de mulheres no Brasil”, houve um aumento da violência contra a mulher nos últimos anos. Foram 21% de crescimento de mortes em uma década até chegar a 13 homicídios femininos diários em 2013. O patamar coloca o Brasil com uma taxa de 4,8 homicídios por cada 100 mil mulheres.

Embora homens sejam mais frequentemente vítimas de armas de fogo do que mulheres, esse tipo de arma é o meio mais usado nos 4.762 homicídios de brasileiras registrados em 2013, segundo o estudo. Foram 2.323 casos, o equivalente a 48,8%, seguido por objeto cortante/penetrante (25,3%), objeto contundente (8%), estrangulamento/sufocação (6,1%) e outros (11%).

Como não se sabe a motivação de todos os registros, não é possível dizer que todos são casos de feminicídio – homicídio de mulheres cometido em razão do gênero, ou seja, quando a vítima é morta por ser mulher. O delito passou a ser tipificado desde 2015, quando a pena para esse tipo de agressão passou a ser maior do que a do homicídio comum.

Menos armas, menos crime

O feminicídio é considerado a última etapa do ciclo da violência. Em geral, ocorre após a mulher sofrer outros tipos de agressões. Por esse motivo, outros indicadores podem ser impactados com a flexibilização de armas.

De acordo com o Relógios da Violência, do Instituto Maria da Penha, a cada 16,6 segundos uma mulher é vítima de ameaça com faca ou arma de fogo no Brasil. E a cada 2 minutos, uma mulher é vítima de arma de fogo.

Um estudo de 2014, do pesquisador Daniel Cerqueira, que é um dos coordenadores do Atlas da violência, publicado pelo Ipea (Instituto de Pesquisas Econômica Aplicada), mostrou evidências de que cada 1% no aumento da proliferação de armas de fogo faz com que a taxa de homicídio aumente em torno de 2% nas cidades.

Lei Maria da Penha e medidas protetivas

A Lei Maria da Penha prevê como medida protetiva de urgência a suspensão da posse e do porte de arma do agressor, mas não há como as delegacias da Polícia Civil saberem se ele tem o registro. A autorização é dada pela Polícia Federal e a integração entre os sistemas está prevista no Sistema Único de Segurança Pública, mas ainda não saiu do papel.

Para a criminalista Stela Valim, que atua em casos de violência doméstica, com o decreto, será necessário que a mulher forneça as informações sobre o companheiro ou ex-companheiro. “Vamos precisar que as nossas polícias e o nosso Judiciário estejam muito mais atentos para essa questão. Vai ter de ser um protocolo obrigatório perguntar para a mulher em situação de violência se o companheiro tem arma em casa”, afirmou.

Mulheres vão se defender com armas?

Para defensores da flexibilização do uso de armas, o acesso facilitado pode aumentar as chances de defesa das mulheres. “Nesse caso a arma serve como esse amparo. Não é uma certeza, mas é uma possibilidade de poder se defender do crime de estupro e eventualmente alvejar o estuprador”, afirmou a deputada Joice Hasselmann (PSL-SP).

Também do partido de Jair Bolsonaro, a deputada Carla Zambelli (PSL-SP), vê a liberação da posse como um fator inibidor da criminalidade. “Não é só o fato de a mulher conseguir se defender porque pode portar uma arma. Hoje o ladrão ou estuprador sabe que ela não tem arma. Quando ele tem uma dúvida se ela tem ou não, a probabilidade de ele estuprar diminui”, afirmou.

Na avaliação de especialistas, contudo, essas análises não consideram elementos ligados à realidade da violência contra a mulher. “A grande realidade do Brasil como um todo continua sendo de que a mulher está em posição de desvantagem em relação ao homem. Ela tem menor (ou nenhuma) autonomia financeira, o que muitas vezes é um dos motivos que a impede de sair de uma situação de violência doméstica”, destaca a advogada Stela Valim. “Se ela não consegue sair de casa porque ainda não consegue bancar a si mesma e aos filhos, comprar uma arma vai ser prioridade? Claro que não.”

Além da limitação financeira, a especialista destaca outras barreiras de acesso às armas. “Não faz parte da realidade das mulheres brasileiras esse estímulo bélico, esse incentivo a se armar e a agir em legítima defesa a todo custo. Num país em que ainda é cultural culpar a mulher pela violência que ela sofre, não parece condizente com o nosso contexto social que ela irá simplesmente sair de casa carregando uma arma na bolsa”, afirma.

A advogada Maira Pinheiro, por sua vez, ressalta critérios para que uma conduta seja entendida como defensiva. “Na legislação brasileira, para que a defesa seja entendida como legítima, deve se dar diante de uma agressão atual ou iminente. Essa noção pressupõe algum tipo de paridade entre agressor e vítima e a violência contra mulher, em regra, se dá entre duas pessoas que não estão em situação de paridade”, destaca. Considerando a dinâmica do comportamento abusivo, a criminalista aponta como remota a chance de uma mulher nessa situação conseguir fazer um curso de tiro, por exemplo. ”É uma visão romantizada e descolada da realidade sobre o que é a violência contra a mulher”, afirma.

A presidente da Associação de Advogadas pela Igualdade de Gênero reforça o entendimento. De acordo com Renata Amaral, usar a arma para se defender ”é uma reação que se espera de quem está pensando no caso de um furto, roubo, em no que denominamos ‘crimes da rua‘, e não em crimes ‘de casa”.

Armas podem evitar estupros?

Sobre os crimes sexuais, os dados mostram que, em geral, o agressor é uma pessoa conhecida da vítima, diferente da imagem de um “estuprador desconhecido em um beco escuro” citada por defensores do armamento.

No geral, 70% dos estupros são cometidos por parentes, namorados ou amigos/conhecidos da vítima, o que indica que o principal inimigo está dentro de casa e que a violência nasce dentro dos lares”, de acordo com o estudo “Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde”, publicado pelo Ipea em 2014.

Segundo o Ipea, no mínimo 527 mil pessoas são estupradas por ano no Brasil e apenas 10% desses casos chegam ao conhecimento da polícia, devido ao estigma do crime. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2017 foram registrados 60.018 estupros no Brasil.

Nesse universo, a maior parte das vítimas são menores de idade e, portanto, não poderiam ter armas. De acordo com o Atlas da Violência 2018, 68% das vítimas de estupro são menores de idade, sendo 50,9% meninas menores de 13 anos e 27% entre 14 e 17 anos. “Ninguém consegue reagir tão tranquilamente nesse estilo ‘olha, um estuprador, deixa eu pegar a minha arma’. Esse fator, na verdade, só coloca essas jovens numa situação de risco ainda maior”, afirma Stela Valim.

Fonte: HUFFPOST.

Foto em destaque: Rosane Lima (Jornalistas Livres).

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