Reforma Administrativa será retrocesso de 100 anos
A imposição de um serviço público sem estabilidade, sem carreira, sem vínculo e com retorno ao clientelismo e ao coronelismo do início do século XX, significará a transformação perfeita de crime em modelo. Entenda o que está em jogo com a PEC 32/2020.
Em 3 de setembro o governo Bolsonaro encaminhou à Câmara Federal Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 32 de 2020 que propõe uma reforma administrativa que visa retirar da CF de 88 todas as garantias e barreiras atuais que buscam minimizar a influência político-partidária dentro do serviço público.
Não é casual a apresentação da PEC 32/2020 neste momento. Um recente estudo do Banco Mundial indicou que estamos vivendo uma transição geracional no serviço público no país, com cerca de 26% dos servidores e servidoras com possibilidade de aposentadoria até o final de 2021.
Ou seja, 1 a cada 4 cargos no serviço público poderão ser substituídos até o final do próximo ano. Um contingente de cerca de 3 milhões de pessoas que poderiam “liberar espaço” para o ingresso de indivíduos vinculados aos grupos políticos que estão no poder tanto em nível federal quanto nos estados e municípios.
O eixo central da proposta é separar os cargos definidos como integrantes de “carreiras típicas de estado“, aquelas que na visão liberal não teriam correspondência com a iniciativa privada, tais como alguns cargos do judiciário, ministério público, legislativo, forças armadas, forças policiais e diplomacia. Mas quando se fala de judiciário, por exemplo, seriam apenas os cargos de magistratura, não os integrantes de outras carreiras vinculadas ao poder judiciário. Em resumo, a ideia geral foi retirar magistrados, parlamentares e militares da proposta da PEC.
Todas as demais carreiras estão incluídas nas alterações propostas pela PEC 32/20, como é o caso de profissionais da educação e da saúde. A amplitude da proposta, pelo quantitativo de integrantes do serviço público que irá atingir, e o fato de ser direcionada para servidores e servidoras de carreiras de menor remuneração, indica qual a ideia central contida na proposição de Bolsonaro e Guedes.
No governo dos milicianos, o crime será o modelo
A PEC 32/2020 indica um retrocesso de mais de 100 anos, onde o concurso público tende a ser substituído por “modelos” de indicação política por contratação privada, seja usando a terceirização direta ou com parcerias com organizações sociais, como no caso do Future-se. Seria como instituir os tais “Guardiões do Crivella”, no modelo usado pelo atual prefeito do Rio de Janeiro para constranger os usuários do SUS nas portas de hospitais públicos.
O retrocesso permitirá que partidos políticos indiquem ‘servidores’ para ocupar diferentes cargos, em especial no que a PEC chama de “cargos de liderança e assessoramento“. Nas instituições federais de ensino essa terminologia é ampla o suficiente para atingir desde o cargo de Reitor até todos os cargos de direção (CD) na Reitoria, nas unidades acadêmicas e nos campi. O governo não necessitaria mais usar o recurso da indicação de um Reitor Pró-Tempore ou a intervenção a partir de listas tríplices. Bastaria modificar a legislação complementar e ordinária para adaptá-la ao seu interesse político-partidário.
Voltaremos ao tempo da República Velha, onde cada troca de governo representava o ingresso de uma leva de “novos servidores”, sempre dispostos a atuar em favor dos interesses do mandatário de turno, via de regra em detrimento dos interesses do estado e da maioria da população.
Além de incluir seus apadrinhados, o governo poderia usar mecanismos para “avaliação de desempenho” dos não-alinhados. A PEC, inclusive, estabelece tal avaliação inclusive para quem já está na carreira, ao introduzir novos princípios da administração pública. Princípios básicos como ‘imparcialidade‘, ‘boa governança pública‘, ‘inovação‘, ‘unidade‘, ‘transparência‘, ‘responsabilidade‘ e ‘subsidiariedade‘, constroem novos caminhos para efetivar perseguições políticas no serviço público e para ampliação de um estado ultraliberal.
Quais seriam os critérios para um servidor ou uma servidora ser “imparcial”? Criticar a gestão ou o governo seria ferir o princípio da “responsabilidade” ou talvez, da “unidade”? E qual seria o significado do princípio da “subsidiariedade”? Seria nos termos de doutrinas políticas liberais, que estabelece, entre outras coisas, “que nenhum órgão público deveria fazer o que órgão privado supostamente faria melhor”? Seria este o caminho constitucional para privatizar grandes empresas públicas ou para extinguir órgãos e fundações?
Não pode haver dúvidas do interesse de Bolsonaro em extinguir órgãos como Incra, Ibama e ICMBio, que por tantas vezes criticou apenas por exercerem suas funções e atividades previstas na atual legislação. Para quem extinguiu o Ministério do Trabalho, que existia no Brasil desde os anos 50 do século passado, ter a possibilidade de extinguir órgãos públicos sem passar pelo crivo do Congresso Nacional é uma prerrogativa que será usada em favor da doutrina do ódio que ataca indígenas, quilombolas, ambientalistas, feministas, LGBTs e toda sorte de indivíduos, estruturas e órgãos públicos que servem para aplicar políticas que este governo despreza.
A falácia da tese do direito adquirido
Alguns colegas estão fazendo a leitura equivocada que tais propostas irão atingir apenas os futuros ingressantes no serviço público. Se tal análise fosse verdadeira, já seria, por si só, suficientemente grave. No entanto, o cenário é ainda pior. Sabemos muito bem o real significado de “direito adquirido” neste país, pois a recente reforma da previdência está muito presente para avivar a memória de todos e todas.
A proposta de reforma administrativa, definida como o ato de colocar “a granada no bolso do servidor” por Paulo Guedes, vai além do que se imagina para os atuais integrantes do serviço público. A ideia contida na proposição é mudar via legislação complementar normas gerais e diferentes mecanismos que atuam no cotidiano do trabalho de servidores e servidoras.
Temas como gestão de pessoas, política remuneratória e de benefícios, organização da força de trabalho, ocupação de cargos de liderança e assessoramento, progressão e promoção funcionais, desenvolvimento e capacitação, duração máxima da jornada para fins de acumulação de atividades remuneradas, serão modificados em caso de aprovação da PEC. Ou seja, tudo que tem relação direta com o exercício das atividades funcionais e os respectivos direitos dos integrantes do serviço público.
Ainda que se avalie que alguns aspectos da proposta não seriam aplicáveis aos atuais integrantes do serviço público de forma direta, por ressalvas contidas no próprio texto da PEC, é imperioso citar que algumas destas proposições não deixam margem para muito otimismo em relação ao futuro. Algumas propostas que indicam que “não se aplica” um determinado mecanismo contido na PEC, desde que haja previsão em legislação anterior, acaba finalizado pela expressão “exceto se houver alteração ou revogação da referida lei“.
Isso acontece, por exemplo, para a proposta de redação das alíneas “a” até “j” da proposição de nova redação do Art. 37 da CF. Como exemplo, se poderia presumir a não aplicação da proposta de redução de 45 para 30 dias de férias para os atuais integrantes das carreiras do magistério federal, por conta da previsão contida na Lei 12.772/2012. Mas o trecho final ao dizer “exceto se houver alteração ou revogação da referida lei” já indica com clareza a intenção de Bolsonaro e Guedes. Não vai mudar na PEC, mas poderá ser alterada a qualquer tempo.
Precisamos, portanto, fortalecer a luta contra a PEC da Reforma Administrativa, em especial disputando a narrativa da proposta junto a população em geral. Mostrando a importância de um serviço público onde o compadrio, a indicação e a precarização não sejam a referência. Um serviço público que não seja cabide de emprego para partidos ou igrejas.
Venha fortalecer o ANDES Sindicato Nacional e ingresse no maior sindicato de professores e professoras das instituições federais de ensino do país, com mais de 70 mil filiados/as e 120 seções sindicais espalhadas em todos os estados da federação. Juntos somos mais fortes. Sindicato é pra lutar, não para assistir!